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O ORIENTALISMO E O ORIENTE

  • Foto do escritor: Murilo Souza
    Murilo Souza
  • 19 de mar. de 2018
  • 7 min de leitura

Atualizado: 24 de mar. de 2018

O Oriente que conhecemos reflete uma tradição acadêmica, cultural e sociopolítica do Ocidente, o Orientalismo, que define, explica e subordina o Oriente ao Ocidente

IG. Exército Egípcio depõe Presidente Mohammed Morsi em 2013.


Analisaremos nesse texto o conceito de orientalismo, sua formulação, aplicabilidade e implicação, tendo em vista as defesas e postulações de Edward Said, autor de o Orientalismo: o Ocidente como Invenção do Ocidente, livro publicado de 1978, a qual é uma obra significativa para os estudos pós-coloniais contemporâneos. Para que sejamos críticos em nossa análise do que é o Orientalismo na visão de Said, torna-se importante analisar quem é o autor e de onde ele explana suas ideias e concepções. Vamos a questão: de ascendência palestina, Said emigra jovem para estudar nos EUA. Em termos intelectuais, se auto-intitula Humanistacristão, possui inclinação teórica marxista e engajamento político anti-sionista nas Questões da Palestina.


Mais algumas ressalvas precisam ser feitas para a melhor compreensão do que vem a seguir. Em primeiro, a partir de Roger Chartier - historiador francês que identifica-se com a Escola dos Annales - entende-se que o ser humano atribui significado e símbolos a sua história e aos lugares que vive e se organiza politicamente. O mundo, em si, não existe senão filtrado pela mente e pelas representações humanas. Por conseguinte, questiono: sem que houvesse a atribuição humana da realidade, espaço-tempo, cultura e política, haveria a concepção de Ocidente e Oriente? Defendo que não. Nesse sentido, devido a questões sociopolíticas e históricas, estando a Europa Ocidental no centro dos processos históricos do que se considera a História Mundial Ocidental, suas instituições acadêmicas, culturais e políticas tinham influência e poder para falar pelos povos do Oriente, da África de outras regiões do Globo. Forma-se então, uma ficção intencionada, um discurso repleto de representações sobre o Oriente.


Tendo esse vista essas características do autor e de como as representações humanas (re)apreendem o mundo a nossa volta, voltaremos a essas ideias paralelamente à construção ao nosso raciocínio.


Com base nas várias definições que o autor atribui ao seu objeto de estudo na obra, tentarei formular uma que seja mais palpável e abrangente para que comecemos a pensar a forma estrutural com a qual Said defende que o Orientalismo está firmado. O Orientalismo, na ótica de Said, é uma maneira de definir, explicar, conceber e "negociar" (com) o Oriente tendo como parâmetro o Ocidente, sua cultura, pensamento político e tradição intelectual, com o suporte de uma série de pressupostos, (re)apropriações e representações.


Exemplos dos usos políticos do Orientalismo como justificativa de dominação dentro da lógica Imperialista Europeia, majoritariamente, Anglo-francesa, podem elucidar melhor o que é e do que é capaz o discurso orientalista, que concebe o oriente não como ele é, mas por representações imaginadas e (re)apropriadas pelos europeus. Trago à discussão, portanto, Lord Cromer, líder britânico da índia e do Egito, tendo estado a frente desse último "país oriental" por 25 anos. Cromer, um dos cânones da sabedoria orientalista, segundo Said, escreve em sua obra Egito Moderno:


O europeu é um raciocinador conciso, suas declarações de fato são desprovidas de qualquer ambiguidade; ele é um lógico natural, mesmo que não tenha estudado lógica; é por natureza cético e requer provas antes de aceitar a verdade de qualquer preposição; sua inteligência treinada trabalha como a peça de um mecanismo. A mente do oriental, por outro lado, assim como suas pitorescas ruas, é iminentemente carente de simetria. Embora os antigos árabes tenham adquirido em um grau um tanto mais alto a Ciência da Dialética, seus descendentes são singularmente deficientes de faculdades lógicas. São muitas vezes incapazes de tirar as conclusões mais óbvias de qualquer simples premissa cuja verdade possa admitir. Tente-se arrancar uma declaração de fato direta de qualquer egípcio normal. Sua explicação será em geral longa e carente de lucidez. Ele provavelmente entrará em contradição consigo mesmo uma dúzia de vezes antes de acabar sua história. Com frequência sucumbirá ao mais brando método interrogativo.

BARING, Evelyn (Lord Cromer). Modern Egypt. Capítulo 34.


Dessa contraposição que Cromer faz em sua obra, podemos pensar melhor na dicotomia Ocidental x Oriental. Enquanto o Ocidental - que está com a palavra, sendo o dono da representação do Oriental - é racional, civilizado e democrático, o Oriental é representado como irracional, bárbaro e tirânico, simplesmente incapaz de experienciar o mundo com a precisão e as competências com que os europeus o fazem. Apesar do reconhecimento dos "grandes feitos orientais", geralmente vinculados a Antiguidade, o discurso deixa bastante claras as prerrogativas orientalistas usadas para a ocupação, dominação e anexação de países orientais por parte de potências europeias.


A base do Orientalismo moderno e contemporâneo, matéria-prima para o Imperialismo Anglo-francês, é o argumento do conhecimento. Na concepção orientalista europeia do Século XIX e XX - presente também no atual século, ainda que de forma suavizada e diferenciada -, o "Oriental" é o oposto do Europeu, sua antípoda. Nesse discurso, em termos de conhecimento, o Europeu é um cético, defensor do método científico, enquanto o Oriental é visto como místico e supersticioso, impreciso. O Europeu é civilizado e o Oriental bárbaro. Se o Oriental tem uma mente imprecisa, logo é preciso que o Europeu o ajude a organizar sua mente, sua cultura, suas ruas, seu país. Atentemos para como o Imperialismo político, econômico e social faz uso do Orientalismo acadêmico e erudito: Países europeus como França e Reino Unido tem a tutelagem de países Orientais como índia, Egito, Palestina, Síria, Líbano, porque essas potências europeias tem melhor conhecimento sobre os orientais do que os próprios orientais. Retornamos ao início de nosso raciocínio: o Conhecimento, que dentro dos usos Imperialistas do Orientalismo, é o que legitima a anexação de territórios de povos ditos orientais às administrações dos estados europeus.


Entretanto, pensar o Orientalismo como um conjunto de ideias formuladas nesse dito Ocidente do mundo com o objetivo de subjugar o que se conhece como Oriente é um equívoco crasso. Além de estar dentro de um molde maniqueista de explicação para essa complexa dinâmica envolta do Orientalismo, pensar que essa estrutura foi formulada somente para dominar o Oriente beira o simplismo. Para que possamos esclarecer esse ponto, usaremos mais uma vez uma definição de Said sobre o que o Orientalismo não é e o que é de forma mais elementar:


[...] O Orientalismo não é um mero tema político de estudos ou campo refletido passivamente pela cultura, pela erudição e pelas instituições; nem é uma ampla e difusa coleção de textos sobre o Oriente. nem é representativo ou expressivo de algum nefando complô imperialista "ocidental" para subjugar o mundo "oriental". É antes uma distribuição de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos; é uma elaboração não só de uma distinção geográfica básica (o mundo é feito de duas metades, o Ocidente e o Oriente), como também de toda uma série de "interesses" [...];é, acima de tudo, um discurso que não está de maneira alguma em relação direta com o poder político em si mesmo, mas que antes é produzido e existe em um intercâmbio desigual com vários tipos de poder [...]

SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Companhia das Letras. Página 24


É imprescindível que tenhamos ideia de que o Orientalismo não é algo que nasce na Modernidade, tampouco no Século XIX, que é onde tem seu apogeu. Se regredirmos no tempo e nas fontes, encontraremos ideias de alteridade entre a Europa - representando o Ocidente - e o Oriente que remetem a Heródoto, cidadão e praticamente da escrita da história no contexto grego antigo. A principal diferença entre o Orientalismo Moderno e o anterior ao Século XVII é a abrangência: na Modernidade, a difusão de ideias e a popularização de discussões intelectuais marcam um momento no qual o conhecimento chega, ainda que esparso e difuso, a uma parcela cada vez maior da população alfabetizada e com condições de participar desse meio.


no pensamento da maior parte dos pensadores orientalistas, a guinada na grandiosidade da História do que se convencionou chamar de Oriente foi o Islã. Até aquele momento, tem-se a ideia de que os orientais tinham sua grandiosidade e, se bem administrados por alguma força exterior - geralmente relacionada ao Ocidente -, poderiam contribuir e muito para com a civilização humana. Nesse sentido, o aspecto islâmico do Oriente significa perigo, mistério e barbárie, na visão ocidental. Entretanto, não nos deixemos levar pelo discurso. Sabemos bem que entre o Mundo Muçulmano e o Ocidente Majoritariamente Cristão há diferenças de pensamento, tradição e concepções culturais. Contudo, essa alteridade não configura superioridade cristã ou muçulmana, até porque a ideia de que existem culturas superiores, melhores ou "mais evoluídas" é incabível, do ponto de vista acadêmico. Ou seja, se as atribuições orientalistas estão calcadas nas diferenças entre o Ocidente e o Oriente, portanto o Orientalismo não é uma ideia avoada da Europa sobre o Oriente, parafraseando Said, mas antes um corpo criado de teoria e prática em que houve, por muitas gerações, um considerável investimento material.


Entretanto, peço que não se afobem: as possibilidades de definição para "Orientalista" não se resumem a que estamos tratando aqui, o conceito central do livro de Said. O termo também pode remeter ao profissional que tem como objeto de estudo o Oriente, cultural, histórica, antropológica e socialmente. Portanto, é preciso ter cuidado ao utilizar a alcunha academicamente.


No mundo Pós Segunda Guerra Mundial, o arcabouço de dominação imperial baseado no Orientalismo entra em relativa crise, pois definia o Oriental como incapaz de realizar grandes organizações e movimentos por conta própria, o que não faz sentido no contexto das independências no Terceiro Mundo. Entretanto, tratar da obra de Edward Said, de 1972, continua sendo interessante, pois pode explicar diversos aspectos da dominação e da hegemonia norte-americana na Região que conhecemos como Oriente Médio, dito que essa nação herda da tradição imperial Anglo-francesa o "fardo de orientar o mundo oriental". As intervenções militares dos EUA no Oriente Médio após a primeira Guerra do Golfo configuram, de certa forma, como se manifesta o Orientalismo contemporâneo, o qual procura "alinhar o Oriente com o Ocidente", democratizando-o, conduzindo e intervindo diretamente na política dos países orientais.


Retornando a reflexão das ideias de autoria, Said, escrevendo do Ocidente (em inglês, e não árabe) e propondo a análise Orientalista, a partir da academia ocidental, acaba ele mesmo reafirmando sua tese de que essa estrutura de poder que subordina, quantifica e garante a dominação ocidental do oriente tem mesmo correspondentes práticos. O Ocidente permanece como Centro de Mudança, pois quando Said critica o Orientalismo, o faz do Ocidente, com ferramentas Ocidentais. Por fim, a parte central sobre o autor é entender que sua obra tem um cunho político declarado. Said crê que o belicismo ocorre com base no humanismo, ou seja, a produção acadêmica, intelectual e cultural embase as intervenções políticas, econômicas e até militares.


Por fim, deixo-vos com mais uma definição do autor acerca do que é o Orientalismo e seu caráter multifacetado.


O Orientalismo, portanto, é um conhecimento do Oriente que põe as coisas orientais na aula, no tribunal, prisão ou manual para ser examinado, estudado, julgado, disciplinado ou governado.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Página 51





Texto provindo de uma discussão em aula da Disciplina de História Medieval B, ou a História Medieval Oriental, adaptado e redigido pelo Acadêmico Murilo Souza da Silva, do terceiro período do Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, em Março de 2018

 
 
 

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