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A "CRISE" DO SÉCULO XIV

  • Foto do escritor: Murilo Souza
    Murilo Souza
  • 19 de dez. de 2017
  • 7 min de leitura

Atualizado: 12 de jan. de 2018

Outono e Primavera: Transformações e apreensões acerca do final do Baixo-medievo Europeu


Tendo em vista que a produção do conhecimento histórico se dá através do diálogo entre temporalidades, quando o presente muda - se movimentando para o futuro -, as "lentes" com as quais se olha o passado também mudam. nesse sentido, para que tenhamos dimensão das apreensões que foram feitas dos acontecimentos do século xiv, no baixo-medievo ocidental, é necessário que tenhamos em mente as fontes, assim como os posicionamentos historiográficos em relação àquele momento.


Para melhor compreendermos como os eventos marcantes desse século mudam a história europeia, primeiro traçaremos uma visão geral acerca da mesma no momento anterior. Vamos às fontes!

"[...] Da quantidade de pão constantemente consumida pela cidade, estima-se que em Florença havia cerca de 90.000 bocas divididas entre homens, mulheres e crianças, [...] Eram 200 ou mais oficinas da Arte della Lana [corporação de tecelões de lã], que produziam de 70.000 a 80.000 peças de tecido, valendo mais de 1.200.000 florins de ouro. [...] Havia 80 bancos de cambistas de moedas. As moedas de ouro cunhadas chegavam a 350.000 florins, e em algumas épocas 400.000 [anualmente]. Florença tinha na época 150 padarias. [...] Cada ano a cidade consumia cerca de 4.000 bois e vitelos, 60.000 carneiros e ovelhas, 20.000 bodes e cabras, e 30.000 porcos [...]"

Cronica di Giovanni Villani, apud R.S. Lopez & I. W. Raymond. Medieval trade in the Mediterranean World, p. 71-73 In: PAIS, Marco Antônio de Oliveira. O despertar da Europa: a Baixa Idade Média. São Paulo: Atual, 1992, p. 40.


Através da fonte de Villani, que chamaremos de Fonte 1, pode-se inferir que o Renascimento Citadino, que começa no Século XII por diversos fatores - principalmente pelo aumento populacional dado no ótimo climático -, faz com que cada vez mais as dinâmicas citadinas entrem em divergência com as dinâmicas do campo. O Direito Citadino e o próprio modo de vida levado nas cidades baixo-medievais inclui padrões de consumo diários, hábitos alimentícios, lógicas de ofício, organização em Confrarias: aspectos que "afastavam" os citadinos das Relações Senhoriais rígidas nas quais viviam a maioria dos servos e vilões no campo.


Quando nos perguntamos, portanto, "qual é a Europa que é afetada pela suposta 'Crise do Século XIV'?", há de se ter em vista que trata-se de uma Europa com população relativamente alta, para padrões medievais, na qual, salvo determinadas regiões e breves momentos, havia quase um século que não se passava fome generalizada no Continente. Também é uma Europa com uma Ética Cavaleiresca bem fundamentada - apesar de, na prática, relativizada -, em grande parte por conta das Cruzadas. Para além, é uma Europa na qual as cidades, até onde podemos inferir pelas fontes, são palco de dinâmicas próprias - costumes citadinos - as quais a população que lá vive reconhece e se insere.


Retomando as questões referentes às "lentes" com as quais "olhamos para a História", duas, em específico, nos interessam mais ao tratarmos o tema. São elas: o Outono da Idade Média e a Primavera dos Novos Tempos;ambas compõem a polêmica historiográfica acerca dos acontecimentos do Século XIV. Partamos, agora, para o cerne.


Imbuídos de uma visão pejorativa em relação a Idade Média, situemos o Movimento do qual provém, primeiramente, a "lente" do Outono: Renascentismo do Século XV, também chamado de Renascentismo Cultural. Dentro desse viés, atribui-se aos acontecimentos do Século XIV tons apocalípticos relacionados, por sua vez, com os Quatro Cavaleiros do Apocalipse que assolam a Europa do Século XIV.


Por conta do processo de término do Ótimo Climático que tinha vigorado na Europa desde o Século X - o qual proporcionou aumento da produtividade alimentícia e consequente crescimento populacional, a terra já não produz o suficiente para alimentar a todos (nesse contexto se encaixam eventos como os cercamentos na Grã-Bretanha como forma dos senhores melhor aproveitarem o espaço). O primeiro Cavaleiro, a Fome, estava entrando no palco europeu, como bem podemos ver os efeitos na fonte de Jean Gerson, que chamaremos de Fonte 2.


"O homem pobre não terá pão para comer, a não ser por acaso um pouco de pão de centeio ou de cevada. Sua pobre mulher dará à luz e terão quatro ou seis pequenas crianças no lar, ou no fogo, que por acaso será quente e eles pedirão pão e gritarão com raiva de fome. A pobre mãe não terá o que levar à boca a não ser um pouco de pão com sal. Ora, deverão suportar essa miséria: pois virão saqueadores que levarão tudo. Tudo será pego e apanhado. E desejarão que pague [...] Mas a preocupação constante, a dúvida angustiante e contínua de ser roubados por príncipes ou gentes de armas deixa-os muito tristes, impacientes e dolorosamente atormentados: tanto que em nosso tempo, muitos são os que caíram em desespero, e se mataram. Deus, que horror! Eles se suicidaram, um enforcado, o outro afogado, um outro enfiando-se uma faca no coração."

Jean Jerson. Ad Deum vadit. Carnahan (Ed.) University of Illinois studies in language and literature, 1917. p. 13. Apud Calmette, J. Textes et documents d'Histoire: Moyen Âge. Paris: Presses Universitaire de France, 1953. p. 239. In: PEDRO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média: textos e testemunhos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. p. 198.


O segundo Cavaleiro - não atribuindo ordem cronológica aos significados - é a Peste. Trazida ao Continente Europeu por conta das Rotas Comerciais Genovesas, acredita-se hoje que, biologicamente, tratava-se de uma variação da Peste Bubônica, contraída pelo ar e pelo contato com o sujeito infectado. Na "lente" do Outono, é tratada como uma das maiores catástrofes demográficas da História da Europa, causando enormes baixas, separação entre famílias, desestabilização do discurso eclesiástico. Sem precedentes, dizimou de um a dois terços da população europeia, dependendo da região.


O terceiro Cavaleiro está representado na figura da Guerra, tendo em contexto o conflito dinástico no qual as Monarquias Inglesa e Francesa haviam se envolvido. Estando mais presentes os danos em solo francês, de forma intensa no Norte, a Guerra dos Cem Anos é um conflito travado entre cristãos no qual se fortalece muito a figura do Mercenário - visto como o Soldado da Fortuna - contratado para travar batalhas por ambos os lados. Adentrando esse ponto, a figura do Mercenário é a de um sujeito que "trabalha com a guerra" e não partilha da Ética Cavaleira, contrastando com a Tradição Cavaleiresca Medieval e suas nuances. Uma vez em solo Francês, os mercenários não farão questão de que a guerra acabe, podendo até vender seus serviços à Coroa que melhor lhes pagassem. Saques, estupros, assassinatos, dentre outros atentados, estarão presentes no advento do Cavaleiro Guerra, apesar de sua dimensão ser sentida de forma mais específica onde a Guerra acontece.


O quarto e último Cavaleiro - não em ordem cronológica, mas em finalidade - é a Morte. Estando a Europa assolada pela Fome, Peste e Guerra, a Morte é uma consequência desses desastres. Há uma dimensão psicológica envolvida na relação das pessoas com a morte nesse ínterim do Século XIV. Dado o impacto que os demais Cavaleiros causavam, não eram incomum que os indivíduos procurassem alguma forma de antecipar seu triste fim e não penar, através do suicídio. Cabe aqui um exercício de pensamento em relação a como essas pessoas concebiam a morte: antes, como uma passagem, um alívio da "casca" que é o corpo, o início de uma vida transcendental mais próxima (ou distante) de Deus. Nesse momento, vê-se, retratado na Fonte 2 citada acima, a situação psicológica de convulsão familiar na qual se encontram as pessoas que estão passando pelos eventos da "Crise do Século XIV" e suas consequências.


Portanto, em termos de Outono, o Século XIV é acometido somente por desastres, sendo esses de diversos gêneros: demográfico, climático, alimentício, religioso, bélico. Todos os caminhos, a partir do efeito dos Cavaleiros, levam a um teor apocalíptico, na atmosfera retratada por Jean Jerson. Mudando a "lente" e passando a tratar da Primavera dos Novos Tempos, que propõe revisões de análise às concepções de Outono, temos considerações mais ponderadas a fazer.


A "lente" da Primavera pressupõe um olhar mais totalizante em relação aos processos do Século XIV, as consequências do advento dos Cavaleiros, bem como o que estava acontecendo paralelamente aos desastres na Europa, aceitando-os, mas relativizando-os.


Dentre o que nos propõe as ponderações da "lente" da Primavera, estão questões como o fortalecimento da "Civilidade" nos costumes citadinos, a crescente retomada do Comércio Inter-regional e até mesmo Intercontinental, vide a maneira com que uma peste endêmica da Ásia chega à Europa por meio de rotas genovesas.


Para além, sob os conturbados acontecimentos que a visão do Outono bem pontua, o Século XIV é também cenário do surgimento/fortalecimento de concepções que estarão presentes no Renascimento e na Modernidade, como a visão da Morte como algo indesejável e temível (lembrar do Cavaleiro Morte), o que gera uma valorização do tempo em vida terrena. Podemos inferir, ainda, que dado o contexto caótico no qual as pessoas do Século se encontravam, as explicações que a Igreja atribuía ao advento dos Cavaleiros eram, por vezes, insatisfatórias e insuficientes. No Século XIV, a valorização da Virtû faz com que o indivíduo seja mais protagonista, não dependendo mais da Providência Divina.


Os olhares historiográficos se complementam e, a fim de explicar complexos eventos que mudaram a História da Europa de tal maneira, é interessante ter em vista que ambas as "lentes" carregam seu contexto e concepção e elaboração, interpretando os acontecimentos/fontes em uma relação de temporalidades: a contemporaneidade do Historiador(a)/Escritor(a) e a contemporaneidade dos que escreveram as fontes, tendo em mente o que essas últimas podem revelar, partindo do lugar de fala de todos nessa espécie de "Mesa de Debate".


De forma mais ampla, o contraste entre a Fonte 1 e a Fonte 2, em termos de Fome, costumes, Morte e mentalidade ilustram bem como muito provavelmente os contemporâneos do Século XIV atribuíam nuances apocalípticas àqueles eventos concomitantes pelos quais estavam passando. A "inovação" que a aplicação da "lente" da Primavera e a complexificação dos processo traz ao debate está na argumentação de que, nas décadas de Peste, os surtos tinham variações regionais e temporais, desconstruindo a visão "contínua" que se tem em relação ao fenômeno, por exemplo. Já em termos de Guerra, a Guerra dos Cem Anos traz inovações de artilharia, como o uso da pólvora.


Em suma, ao contrário dos respectivos fenômenos estacionais, o Outono da Idade Média e a Primavera dos Novos Tempos ocorrem simultaneamente, gerando um envolto onde a 'Crise do Século XIV" é cenário de queda de folhas, mas também de florescimento.




Texto do Discente de Licenciatura em História Murilo Souza da Silva, adaptado da avaliação Final da Disciplina de História Medieval do Mundo Ocidental, Ministrada pelo Prof. Dr. Francisco Mendonça, na Universidade Federal de Santa Maria, 2017/2

 
 
 

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